O que nos resta quando perdemos o pensamento crítico?

Antes de tudo, é importante informar, caro leitor, que este artigo foi escrito exclusivamente para abordar as conspirações, teorias e easter eggs contidos no filme.

Portanto, se decidir continuar a leitura daqui para frente, encontrará uma série de spoilers sobre a produção da Netflix.

O mundo Depois de Nós (Leave the World Behind) é escrito e dirigido por Sam Esmail e estrelado por Julia Roberts, Ethan Hawke e Mahershala Ali. Esmail é conhecido por criar a série dramática Mr. Robot

Este thriller psicológico narra a história dos Sandford, uma família que opta por passar as férias numa luxuosa casa em Long Island na tentativa de escapar do caos do mundo.

No entanto, o período de descanso toma um rumo inesperado quando, de madrugada, dois estranhos afirmam ser os legítimos proprietários da residência e solicitam permissão para entrar.

Em meio a grandes desconfianças, todos se veem obrigados a lidar com um apagão que se espalha pela Costa Leste dos Estados Unidos.

No decorrer do filme, tanto os personagens quanto o público se veem desafiados a compreender o que está ocorrendo, à medida que todas as formas de comunicação são interrompidas, incluindo a Internet, a mídia televisiva e até mesmo os satélites americanos.

Esmail consegue pintar um retrato perturbador e plausível de como o ciberterrorismo pode desestabilizar um país.

Barack e Michelle Obama

Tanto Barack Obama quanto a ex-primeira-dama dos Estados Unidos, Michelle Obama, desempenharam papéis significativos em “O Mundo Depois de Nós”.

A produtora Higher Ground, fundada pelo casal, envolveu-se no projeto em 2022.

Segundo o diretor Sam Esmail, o ex-presidente foi consultado para obter conselhos durante a elaboração dos rascunhos originais, auxiliando a ancorar a história na realidade.

Embora a obra seja ficcional, o objetivo de Esmail era mantê-la o mais realista possível, e Barack Obama o ajudou a alcançar esse objetivo.

A teoria de três passos de isolamento

A teoria de três passos de isolamento, apresentada pelo personagem de Mahershala Ali, mostra como o ciberterrorismo pode desestabilizar uma nação.

Segundo essa teoria, o primeiro passo é o isolamento, com o completo bloqueio dos meios de comunicação e transporte.

A ação garante que ninguém tenha a capacidade de espalhar informações sobre o que está acontecendo, prendendo essencialmente todos em suas localizações geográficas, em estados de desesperança e confusão.

O segundo passo é o caos sincronizado, evidenciado no filme pelo ruído misterioso e pelos panfletos vermelhos que prejudicam silenciosamente os civis e espalham desinformação.

O terceiro passo é a guerra civil. Como os civis não têm um inimigo claro, teoricamente se voltam “naturalmente” uns contra os outros, sem que os atacantes desonestos tenham que adicionar mais combustível ao fogo.

Esmail faz referência a eventos da vida real, como o “Love You” Bug e o ataque à rede elétrica ucraniana, para conferir maior autenticidade aos ataques retratados no filme, destacando a necessidade urgente de proteção contra ameaças cibernéticas sofisticadas.

O “Love You” Bug, também conhecido como “ILOVEYOU” ou “Love Letter”, foi um dos ataques de vírus de computador mais notórios em maio de 2000. O vírus causou danos significativos, impulsionando mudanças nas práticas de segurança cibernética.

O incidente enfatizou a importância da conscientização e da proteção de sistemas contra ameaças virtuais. O criador do worm nunca foi identificado ou responsabilizado legalmente.

Já o apagão da rede elétrica ucraniana em dezembro de 2015 foi um dos primeiros casos conhecidos de um ataque cibernético bem-sucedido com impactos reais na infraestrutura física de um país.

Durante o ataque, hackers comprometeram sistemas de controle industrial ligados à distribuição de energia elétrica na região ocidental da Ucrânia, resultando em cortes de eletricidade que afetaram milhares de pessoas. O governo ucraniano atribuiu o ataque a hackers russos, mas a Rússia negou qualquer envolvimento.

Esse incidente foi um considerado um grande alerta, demonstrando que ataques cibernéticos podem ter consequências tangíveis e prejudiciais na infraestrutura crítica de um país. Desde então, esse tipo de ataque tornou-se uma preocupação global. Governos e organizações têm intensificado os esforços para fortalecer a segurança cibernética de infraestruturas críticas.

Essas situações evidenciam a real possibilidade de hackers interferirem em sistemas de transporte automatizados, demonstrando como eventos como os do filme não se limitam a um mero roteiro de ficção.

A simbologia dos Cervos no filme

A presença recorrente da figura do cervo é de grande importância em “O Mundo Depois de Nós”.

A personagem interpretada por Julia Roberts comenta pela primeira vez sobre a aparência desses animais logo quando percebe que nem tudo parece estar bem. O marido, interpretado por Ethan Hawke, responde prontamente sugerindo que “avistar cervos pode ser um bom presságio”, acrescentando em seguida “pelo menos de acordo com a mitologia mesoamericana”.

Este esclarecimento é necessário para a trama, uma vez que, na mitologia grega, o cervo está associado à morte, e na cultura curda, o animal representa o azar.

À medida que o filme avança, mais cervos começam a aparecer, confirmando que esses animais não são, de fato, um bom presságio.

Teslas desgovernados

O primeiro instinto do casal é abandonar a cabana alugada e buscar refúgio em Nova Jersey quando o ataque cibernético se desencadeia.

No entanto, eles logo descobrem que as áreas urbanas são consideravelmente mais perigosas do que as florestas. Eles encontram a rodovia congestionada por Teslas, impossibilitando a passagem de qualquer outro veículo.

A cena é uma das mais emblemáticas e impactantes do filme. Embora o incidente não seja totalmente explicado, é possível inferir o que pode ter ocorrido. Tudo indica que o episódio com os Teslas, assim como a chegada de um petroleiro à praia e a queda de aviões no oceano, são resultados de ataques cibernéticos.

No caso dos Teslas, os hackers provavelmente invadiram o sistema de direção automática dos veículos para guiá-los até aquele local específico, onde se acumularam e bloquearam completamente a rodovia.

Mais uma vez, a narrativa do filme encontra respaldo em nossa realidade. Recentemente, carros autônomos da GM causaram um congestionamento caótico no Texas, nos EUA.

Fotos compartilhadas nas redes sociais por residentes e motoristas na região mostram vários Chevrolet Bolt da Cruise sem ninguém a bordo, alinhados nas ruas afetadas. Sem ocupantes, os veículos precisaram ser operados remotamente a partir do centro de controle da empresa.

Sobre o final e a alienação digital que vivemos hoje

O final de “O Mundo Além de Nós” propositadamente deixa perguntas sem resposta, refletindo a frustração dos personagens confusos, explorando a dependência da nossa sociedade em relação à tecnologia.

De forma intrigante, Esmail adiciona um detalhe quase imperceptível e que pode ser crucial para entender o sentido da cena final do filme.

Por volta dos 34 minutos, a câmera foca em uma das TVs da casa, exibindo a tela de ‘Transmissão de Emergência’. A imagem revela brevemente um mapa dos EUA com a manchete “Ataque cibernético em todo o país”.

Apesar da pixelização inicial, a imagem entra em foco antes de desaparecer. Uma análise mais detalhada revela um código QR na área de Kentucky/West Virginia.

Esse QR-Code direciona para o site de um local real, o parque de diversões abandonado Lake Shawnee Abandoned Amusement Park em Mercer County, West Virginia.

O site descreve a atração como “um dos lugares mais assombrados do mundo”, associado a um passado sombrio, incluindo um cemitério de nativos americanos, mortes violentas e acidentes estranhos.

Teorias sugerem que esse easter egg inserido no filme pode estar relacionado ao desfecho e à mensagem central. No final, Rose, a filha do casal, busca refúgio ao encontrar uma caixa de DVDs de Friends no bunker de uma casa próxima.

E aqui está outra conexão do filme com o mundo real: a iminência da aniquilação global parece tão palpável quanto durante a Guerra Fria para os americanos. Por essa razão, os bunkers já integram a cultura americana há algum tempo.

Diversas empresas em todo o mundo estão atendendo a uma demanda crescente por espaços que possam garantir proteção contra diversos riscos, como uma pandemia global, um asteroide ou a 3ª Guerra Mundial. Esta empresas oferecem, ao mesmo tempo, comodidades luxuosas, semelhantes à retratada no filme.

O negocio está tão em alta que há rumores recentes de que Mark Zuckerberg, dono da Meta, estaria construindo um bunker secreto de R$ 1,3 bilhão.

E assim, inserida em outro contexto intrinsecamente conectado à nossa realidade, Rose assiste ao episódio final de “Friends” confortavelmente acomodada em um luxuoso bunker, isolando-se dos horrores de um país mergulhado em total anarquia.

O parque de diversões, erguido sobre um terreno marcado por mortes violentas, pode simbolizar como a sociedade muitas vezes opta por ignorar coisas terríveis em busca de diversão e distração, assim como a filha do casal, imersa em sua futilidade e alienação.

Diante do mundo em que vivemos hoje, repleto de alívios superficiais e distrações digitais, esta explicação faz sentido para você?

Se não, observe mais o mundo ao seu redor… ou então, vá assistir às 10 temporadas de Friends no seu serviço de streaming por assinatura, em qualquer tela mais próxima de você.