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A inteligência artificial e as dores de uma vida no piloto automático

In O que assistir
fevereiro 20, 2023
A IA deixará os nossos cérebros mais desatentos?

A tecnologia foi feita e pensada, por nós, seres humanos, em uma tentativa de se criar um espelho, algo que pudesse mimetizar, de alguma forma, a nossa capacidade cognitiva.

Em parte, a tentativa foi bem-sucedida. Nas atividades mais corriqueiras, aquelas que demandam menos cognição, a tecnologia vai bem, libertando-nos para o exercício de afazeres cada vez mais próximos da nossa vocação e dons, e que envolve todos os processos mentais relacionados à criatividade, à tomada de decisões e à reflexão. Isso a máquina ainda não é capaz de fazer, o que deixa “no ar” uma enorme dúvida, se, algum dia, elas ainda serão capazes de proezas tão humanas.

Gosto de acreditar que a tecnologia nos serve – ou deveria servir – como uma extensão de nossas habilidades. Uma forma de nos permitir voos maiores. De mais anos de vida (e com mais qualidade) ao aumento da capacidade de entrega nos ambientes corporativos, com volumes e com uma uniformidade em uma proporção até então nunca vista.

Penso que esta deveria ser a maior convicção entre nós. Mas acontece que boa parte das pessoas se encanta com as facilidades advindas do uso da tecnologia, e com isso deixam de lado aquelas tarefas que despertavam suas emoções, interações sociais, criatividade e imaginação. Assim, estas pessoas se tornam cada vez mais figuras robotizadas.

E o ato de robotizar acaba tendo um impacto enorme em muitos de nós: A vida começa a acontecer em um plano de fundo, impactando não só o trabalho, mas as nossas relações e a nossa capacidade de tomar decisões… e até mesmo de nos tornarmos mais estratégicos.

A série da Amazon Prime chamada Soulmates, co-escrita pelos criadores de Black Mirror e Stranger Things, chamou muito a minha atenção em relação a este tema, sob a perspectiva de continuarmos terceirizando nossas capacidades de sentir e decidir.

Nela, os seres humanos começam a questionar os seus relacionamentos conjugais, pautados até então na emoção, na atenção sensorial e no sentimento mais bonito e forte do qual somos dotados: o amor. Na série, uma empresa chamada Soul Connex desenvolve uma tecnologia que faz um match entre pares ideais, e que, através do marketing e da consolidação de uma nova cultura, começa a transformar a vida das pessoas.

Seria mais fácil transferir a responsabilidade desta tomada de decisão a I.A.? O “se relacionar” de maneira automática, ditada por uma tecnologia, seria uma espécie de atalho, nos direcionando por uma via menos conflituosa para uma vida mais feliz?

Se no futuro, seremos capazes de renunciar a um sentimento tão nobre como o amor, imagine o que a grande maioria não faria no trabalho.Neste ponto, vale um questionamento, mais simples e menos filosófico: As máquinas vão nos substituir porque são realmente melhores, ou por que estamos nos tornando um reflexo piorado delas?

O pensar é o que nos diferencia. Mas parece que isso não é uma regra seguida por muitos, principalmente diante de cenários automatizados. Existem pesquisas, como o estudo realizado por Jonas Gouraud, Arnaud Delorme e Bruno Berberiana, publicado no editorial Consciência e Cognição mantido pelo Instituto de Psicologia da Universidade de Tartu na Estônia, que demonstram que pessoas em atividades manuais apresentam uma probabilidade muito menor de desfoque, por se manterem mais atentas durante o processo de execução. A frequência de distração mental aumenta frequentemente após 20 minutos sob uma condição automatizada.

Agora, pense comigo: quantas vezes você não saiu de casa para o trabalho, dirigiu por vários quilômetros sem ao menos pensar no trajeto?

Pois é. A ausência de atenção e foco já é um mal presente em nossas vidas há muito tempo, e o legado do “A.I first” deve aumentar ainda mais esta conta. Quando a automação não se comporta como esperado, pode ser difícil para um individuo que interage com ela entender o que se passa, ou até mesmo retomar o seu controle manual. Pense nisto acontecendo em uma casa automatizada, no trânsito, ou em empresas cada vez mais dependentes de sistemas informatizados.

E acontece que pelos próximos 10 anos, nós vamos ter que aprender a conviver em um ambiente cada vez mais misto, em nossas casas, em nossas cidades e em nosso trabalho. Vamos dividir nossas tarefas e o nosso espaço com as máquinas, que tentarão cada vez mais nos acompanhar em nossa maneira de interagir com o mundo, e com as nossas responsabilidades.

Os assistentes virtuais já chegaram em nossa vida para ficar, se integrando de uma maneira belíssima aos equipamentos e gadgets já disponíveis, com a missão apenas de automatizar. Agora, com este casamento high tech, a missão se torna mais audaciosa: A tecnologia pretende, sem ainda ter a devida consciência, nos poupar de nossos pensamentos e decisões.

E aí esta o nosso maior desafio: nos mantermos ativos mentalmente, focados em nossa cognição, para extrairmos o máximo das duas máquinas: a humana, e a robótica.

A conversa de que a inteligência artificial irá dizimar empregos e profissões verdadeiramente não é uma falácia: A I.A. irá mesmo eliminar as atividades manuais, mas também, e, principalmente, aqueles humanos que se tornarem cada vez mais dispersos, em um mundo onde a capacidade de se criar, interagir e pensar será cada vez mais latente. Se manter humano, agora, passa a ser fundamental.

Se o “óbvio” será feito pelas máquinas, quem irá ficar responsável por guiar o mundo em seu processo de ressignificação? Essa transformação já está em curso, e se você ainda não percebeu, sugiro que saia logo do modo “piloto automático” – comece a experimentar a sua vida, o seu trabalho e as suas relações fazendo o melhor uso da tecnologia, e não se tornando refém dela. Afinal de contas, nós somos o espelho, e não o reflexo.

Serviço:

Soulmates
Ano: 2020
Criado por William Bridges, Brett Goldstein (II)
Elenco: Sarah Snook, David Costabile, Sonya Cassidy
Nacionalidade EUA
Disponível na Amazon Prime

* Artigo escrito por Vinicius Debian, publicado na revista Época Negócios

Vinicius Debian
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Enquanto o futuro acontece para alguns, ele é determinado por outros. Tecnologias exponenciais, fenômenos relacionados a consciência, espírito e mente são a sua fonte de inspiração. As experiências vividas junto a Singularity University - organização que tem como objetivo impactar positivamente 1 bilhão de pessoas ao redor do mundo - e IONS - Instituto de Ciências Noéticas fundado pelo astronauta da missão Apollo 14, Edgar Mitchell – influenciam de maneira significativa seus textos, workshops e podcasts.